O honroso dia que vim a ser cantor de Bingo ou a Odisseia Bingal
Vivo
numa comunidade pequena, praticamente afastada do que chamamos de realidade.
Comunidade esta que está localizada próxima à região do Terminal Varginha em
São Paulo, Brazil (Brasil, se você for do país).
Junho,
como de costume, comemoramos a importante data do Dia de São
Marcelino Champagnat (Fundador da Congregação dos Irmãos Maristas), mas secundariamente
comemoramos as festas Juninas. Uma festa que encheria os olhos do Deus Baco,
regada a bebida e comidas típicas brasileiras, tais quais como esfirra do Habib’s
e refrigerante Dolly.
Todo
ano nossa comunidade promove uma celebração Junina, onde reunimos vizinhos e
simpatizantes de nossa pequena reunião.
Ao
longo dos anos fomos perdendo figuras históricas e importantes de nossa
comunidade, que nos fazem muita falta, bem como Seu Antônio (in memoriam), renomado
e reconhecido profissional de Portarias, que sempre ficara responsável pelo
nosso santo churrasquinho com farofa nas festas.
Já
diz a tradição, desde muito anos, quando meu avô ainda administrava nossa
comunidade, que cada morador que comparecesse deveria levar um prato doce ou
salgado e um, popularmente conhecido como móia guela, refresco.
Um
dia antes de nossa comemoração alguns vizinhos escalados se reúnem para fazer a
montagem das barracas de comes e bebes e da pescaria, que é onde eu mais
exatamente entro nessa nossa pequena aventura. Muito embora eu seja filho do
líder de nosso povoado (um título que foi tomado de meu avô em meados de agosto
de 1992, mas que foi reconquistado por meu pai durante a Batalha da Reunião de
Ata de 2003, e que eu espero um dia ser passado a mim), eu não tenho muito
contato com os moradores de nosso vilarejo, mas quando o dever chama sou o
filho que não foge à luta! Pelo 3º ano consecutivo fui escalado para o
prestigioso cargo de Caixa da pescaria.
Todos
os anos aqueles pequenos olhinhos me encaram com admiração quando chegam ao Caixa
e pedem com toda a sua animação: Tio, me dá uma pescaria?
Por
fora eu dou uma gostosa risada em resposta, mas por dentro me lembro de uma grande
anedota de nossa aclamada cantora e compositora Maria Bethânia, que eu jamais
poderia replicar com tamanha fidelidade, portanto, deixo aqui com vocês um material para consulta:
https://www.youtube.com/watch?v=khAMpjW-hPQ
Assim
passo o período de nossa celebração.
Este
anos não pudera ser diferente e assumi o meu posto, devidamente uniformizado,
como manda o figurino, com camisa xadrez e aquela sobrancelha ajuntada feita
com lápis de olho.
A
festa se iniciara! E logo iam chegando os vizinhos, atraídos pela música
Sertanejo-Acadêmica, assim como os ratos eram atraídos pelo Flautista de
Hamelin para fora da cidade.
Em
suas mãos podiam se ver bandejas carregadas com comida para deleite de todos.
Muito
embora a chuva fosse colossal, isso não impedia que as pessoas chegassem e se
aconchegassem de baixo das barracas. Logo o burburinho aumentava mais e mais e
pôde se ouvir:
- Ô NANDA! NANDA! OLHA O BOLO MENINA, TÁ DEIXANDO CAIR
CHUVA NO BOLO! VAI MOLHAR TUDO! – tratava-se da mãe de Fernanda que gritava
sobre a falta de atenção da filha ao carregar o bolo para o balcão de comidas.
A
chuva ainda caia fortemente e sem cessar e como de praxe as conversas se
iniciavam com um caloroso:
- Que chuva, não rapaz?
Quando
foi decidido que já havia um número considerável de moradores reunidos, Ângela,
a responsável pelo Bingo, começou a vender as cartelas para o jogo.
- OLHA A CARTELA DO BINGO! – bradava Ângela – SÃO 3 POR
10!
Ieda, uma vizinha
que se encontrava conversando comigo chamou por Ângela:
- Ô ÂNGELA, QUANTO QUE TÁ O BINGO?
- Ieda, menina, que bom te ver aqui! Tá 3 por 10 as
cartela.
- Mas 3 por 10, Ângela? Que isso? Não tenho dinheiro
pra isso, não.
- Ah, Ieda, libera esse dinheiro ai! 10 reaizinhos, só!
As prenda tão boas, eu mesma comprei. – disse Ângela, orgulhosa.
- Ai, menina. Preciso ver se eu tenho aqui! – disse Ieda
revirando os bolsos. – Ô Valdo, vem cá! VALDO?! Vem cá! Cê tem 10 conto, ai?
Valdo,
o esposo de Ieda, começou então a procurar a carteira nos bolsos, tateando sua
jaqueta e os bolsos de suas calças. Até que achou a sua carteira e conferiu
para ver se encontrava a quantia requisitada.
Achou
e entregou a sua esposa, que entregou à Ângela, que por sua vez entregou a Ieda
as cartelas, que entregou ao seu marido para que guardasse até a hora que
começasse o Bingo.
Por
volta de uma hora de festa já havia se passado e Ângela já tinha vendido quase
todas as cartelas, mas ainda tinha um problema. Maria do Carmo (mais conhecida
como Mariazinha ou do Carmo, para os achegados), ainda não havia chegado. Ela,
já por quase 10 anos, era a cantora oficial de Bingo. O tempo passava e o
falatório sobre o paradeiro de Do Carmo se alastrava como fogo na palha seca. Falavam
até de cancelar o Bingo, afinal de contas um Bingo sem a Do Carmo não poderia
ser Bingo.
Eu
mesmo estava muito em choque, pois sempre fora um seguidor do trabalho de Do
Carmo.
Finalmente
conseguiram contato com a nossa diva bingal e para espanto de todos ela não
poderia chegar a tempo para festa. Fora para a casa de uma irmã em Campinas e
não conseguiria voltar a tempo devido ao trânsito e à chuva.
Quando
a notícia foi repassada na festa houveram inúmeros gritinhos de horror e
pôde-se ouvir alguém gritar DESGRAÇA!, soube até que Dona Márcia desmaiou
devido ao choque, fato narrado por seu filho.
Às
pressas precisaram recorrer à uma substituição! Em respeito aos grandes nomes
do Showbiz: O Show deve continuar.
Recorreram
à uma rápida escalação entre os anciãos de nossa comunidade e o grande
escolhido fora seu Mário, que muito embora estivesse passando por uma gripe e
não conhecesse Corega Tabs, pois a chapa inferior encontrava-se um pouco
frouxa, Seu Mário conhecia o grande vocábulo bingal para que pudesse haver uma
certa fluência durante o jogo. Seu Mário era um entusiasta da arte do Bingo,
frequentou casas de Bingo por muitos anos, até mesmo quando estas foram
proibidas.
Embora
alguns protestos, S. Mário tomou o
lugar, microfone na mão e óculos na ponta do nariz, tudo estava preparado.
A
coisa parecia andar bem, apesar de algumas confusões com números terminados em 06
e 09, pois S. Mário não conseguia enxergar os tracinhos em baixo para
distinção.
A
partida rolava e vez ou outra S. Mário atiçava a galera: Quem tá na bôa?
Gritos
de aprovação.
A
partida era de cartela cheia e o prêmio era uma linda manta em microfibra com
estampa de oncinha. Era tudo o que o povo queria.
-
I dois patinhos na lagoa, I 22!
A boa! Chama a boa!, alguns gritavam.
-
G 59!
Tô por uma!
- Óóóó 74! – anunciou S. Mário. – Óóó, novamente, 65!
BINGO!
Ah,
pobre S. Mário, se ele soubesse o que lhe aguardava nesse dia, ele teria
cuidado melhor de sua saúde ao longo dos anos. Beth, aquela que gritou Bingo!,
estava do lado de S. Mário, este, por sua vez, não imaginava que alguém tão
próximo de si ganharia, quando ouviu “Bingo!”, devido a um problema no coração,
tomou um susto muito forte, tão forte que até deixou cair o microfone em sua
mão.
S.
Mário, ficou pálido e ofegante, mais branco que o branco da cartela de bingo.
Naquela
noite, S. Mário precisou ser levado às pressas ao Pronto Socorro e não pôde
cumprir com sua função como cantor de Bingo. Mais uma vez a comunidade recebera
um terrível golpe, quase que uma coisa armada do destino para que aquele ano
não tivesse o jogo.
As
vizinhas mais religiosas diziam que aquilo era obra de bruxaria e era mandinga
da Do Carmo pra que ninguém substituísse seu cargo.
Poucas
pessoas têm conhecimento do que irei relatar aqui, porém sempre fora um sonho
meu poder cantar uma rodada de Bingo.
Desde
criança eu já era um grande admirador da arte de uma boa bingada. Sempre quando
ia com a minha mãe e tia nas casas de bingo eu ficava encantado e deslumbrado
com aquela vida. Imagine só, todas as pessoas ali, reunidas para te ouvir,
ansiosas por suas palavras. Aquilo era prestígio.
Dessa
vez o assunto sobre o cancelamento do Bingo tomou proporção mais séria.
E
eu não poderia ficar parado vendo o caos e o desespero tomar conta do nosso
povoado. Ainda que eu não fosse completamente fluente na arte do Bingo eu sabia
da minha capacidade avançada! Titubeei, é claro, mas de novo: um filho teu não
foge à luta!
-
Eu me voluntario! Eu me voluntario como cantor do Bingo – disse eu atrás do
balcão do caixa.
Talvez
não o melhor jeito de me candidatar a um cargo, mas sempre fui muito amante da
cultura infanto-juvenil. Algumas pessoas pararam de correr e me olharam
espantadas. Algumas com um escárnio evidente em suas faces. Mas eu não ligava.
-
Você? – disse Ângela. – Rá! Você não poderia. Não passa de um moleque.
Meu
pai, que estava ajudando na barraca das comidinhas veio correndo ao meu encontro.
-
Filho, o que você está fazendo?
-
Eu posso fazer isso! Estou preparado. Venho me preparando toda a minha vida
para esse momento e eu sinto, eu sinto, que agora é a minha chance de eu provar
o meu valor.
-
Mas filho, isso é uma tremenda responsabilidade e outra, estão falando sobre
uma maldição sobre o cargo.
-
Pai, querido! Não te preocupes. Não há maldição, S. Mário já era mesmo velho e
teve um piripaque com o grito da Beth.
Eu
então saí do meu posto e comecei a me dirigir para o palanquezinho do Bingo. As
pessoas abriam caminho para que eu passasse, sem dizer nada. O nervosismo
tomava conta de mim, mas eu não poderia mais voltar atrás.
Cheguei
ao palanque, tomei o microfone e disse: Boa noite pessoar!
Algumas
vozes desanimadas me responderam.
-
Vamos dar continuidade ao nosso Bingo, sô!
Ainda
nada, eu percebia que aquela seria uma plateia difícil de agradar.
-
Gente, vamos pra segunda rodada do Bingo! Agora o prêmio vai ser um lindo... Um
lindo... (Qual era o prêmio?)
-
Um porta guardanapo inox. – sussurrou Ângela me meu ouvido.
-
UM LINDO PORTA GUARDANAPO INOX. – Droga, o prêmio não era muito favorável. –
Vamos então girando aqui nossas pedras e a primeira pedra é: G 51, uma boa ideia!
Algumas
pessoas ergueram suas cabeças e me olharam, ainda meio desconfiadas.
Shack.
Shack. Shack. Shack. As pedras se batiam uma com as outras.
-
A próxima pedra é: N 33, a idade de Cristo!
Ainda
desconfiados, mas eu já tinha mais atenção.
Shack.
Shack. Shack. Shack.
-
Bêê, começou o Bingo, B 1.
Alguns
sorrisos tímidos.
Shack.
Shack. Shack. Shack.
-
Quem ainda não marcou nada? – perguntei. Algumas pessoas levantaram a mão. –
Olha lá, essa aqui então é pra vocês. De novo, Bêê, as canelas da Olívia, B 11.
Pude
então ouvir alguns risinhos.
Assim
foi indo a rodada, bem aos poucos eu via que eu conseguia conquistar aquele
público.
-
Olha aí, um carro, hein? Iiii 30!
-
Quem tá com sorte ai? Agora vai ficar com azar, deu Bêê 13!
-
Idade da dúvida: Iii 24!
As
pessoas já se soltavam mais, pareciam mais à vontade comigo no palanque. Até
que alguém grita: A boa! Chama a boa!
Indescritível,
é o que eu posso dizer sobre essa sensação. Esperei anos por esse momento e
finalmente ele chegara. Apesar da minha forte emoção e de sentir meu olho
marejar um pouco, eu não podia fraquejar naquele instante.
-
Agora vai ser a boa! - Shack. Shack. Shack. Shack. – O óóóó, olha ai, essa vai
pros danadinhos, O 69!
- G 54
- N 34
- B 12
- I 19
- 0 71
BINGO! E o povo
foi à loucura! Ao longe eu podia ver o brilho nos olhos marejados de orgulho do
meu pai.
A felicidade era geral! O Bingo
fora salvo!
A noite terminou e muitas
pessoas vieram me parabenizar. Algumas disseram que ficaram muito satisfeitas
com a minha releitura em cima do Bingo tradicional Disseram que eu era uma voz
jovem e que precisava ser ouvida.
E foi assim, meus
caros, o dia em que eu narrei o Bingo!
Desejo ótimas
festividades à todos.
Grato.
[conto baseado em fatos irreais - ainda carrego o sonho de cantar Bingo]
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