A Jústíssima Comédia nada Divina

A juíza Ivone levantou da cama. O relógio já marcava 6h, o despertador do celular começou a tocar a sua música favorita “Fogo e Paixão” do grande cancioneiro brasileiro, Wando. Devido ao horário de verão tudo ainda estava escuro do lado de fora. Então nem se deu ao trabalho de abrir as cortinas. Tivera uma noite particularmente irritante devido ao excesso de calor e só de pensar em que logo menos teria que vestir seu habitual uniforme de juíza só pensava em como gostaria de poder ir trabalhar pelada por baixo de seu “hábito” como gostava de brincar.
Do outro lado da cidade também começava a manhã do advogado Aleexandre. Detestava o próprio nome, mas sua descendência é carioca, muito embora ele tenha nascido em São Paulo, Capital. O pobre, por sacanagem do escrivão paulista que não ia com a fuça de cariocas, recebera o nome por conta do sotaque da mãe ao pronunciar Alexandre, porém com som de Alixandre. O horário de verão também mexia muito com ele, pois tinha grande dificuldade de se adaptar. Era sempre a mesma ladainha de todos os santos: quando finalmente começava a pegar costume tinha de atrasar novamente o relógio. Achava simplesmente detestável. Para variar seu despertador tocou com o sonoro “Triiiiim”. Ele abominava o objeto, mas não havia muito o que poderia fazer, pois ganhara o despertador de dia dos pais numa ação da escola dos filhos. Ele mal conseguia acreditar que tinha pago R$ 50 por um relógio com a foto dos filhos e que pior ainda, odiaria tanto o presente. Sua esposa se mexeu na cama também já desperta. Também odiava o tal despertador mas achava que o marido tinha o maior apreço pelo objeto, mal sabia ela.
Não muito longe de onde Aleexandre mora, também vive um de seus clientes, Theobaldo Honório, que recentemente havia sido dispensado de seu serviço na “firma” e entrou com um processo trabalhista contra a mesma. Acordou confiante naquela manhã. Afinal, no Brasil processos trabalhistas contra empresas são praticamente causas ganhas. Seu amigo Pedro, mais conhecido como Xablau, tinha concordado em depor a seu favor no julgamento. Seu advogado disse que seria uma audiência breve e que não tinha com o que se preocupar, com as provas e evidências que tinham as chances de perder a causa eram praticamente nulas.
Ivone, Aleexandre e Tehobaldo não esperavam por uma simples coisa chamada acaso.
A juíza deu de comer ao seu gato, Pavarotti, infelizmente seu gato tinha um sério problema em suas cordas vocais, quando o tadinho miava parecia um motor de fusca azul calcinha, 93. Fechou o apartamento e saiu do prédio com seu luxuoso carro para o tribunal. Aleexandre mal teve tempo de tomar seu café da manhã, pois na rotina entre deixar os filhos na escola, ainda tinha que correr para o tribunal. Theobaldo despediu-se da esposa que lhe dera um beijo seguido de um sorriso amarelo, não por desconforto, mas tinha um péssimo hábito de fumo que dividia com o marido.
Theobaldo e Aleexandre tinham combinado de se encontrarem em frente ao tribunal, junto com Xablau. Eles passariam mais uma vez o roteiro que tinham combinado e então às 8h entrariam para a audiência. Aleexandre dera graças a Deus que estaria finalizando o processo. Particularmente não gostava de Theobaldo e o achava um xucro, mas ele estava em dia com seus deveres, então nada mais justo que receber por seus direitos. Trabalhara na empresa por mais de 10 anos, além do que normalmente teria a receber, ainda receberia um gordo adicional que realizaria o sonho de Baldo e Sônia de fazer o tão sonhado puxadinho. Baldo não tinha o melhor emprego do mundo, mas pagava as contas e era isso o que importava. Trabalhou todo esse tempo como empacotador de salsichas para uma grande fábrica de alimentos.
Xablau chegou nos 15 do último tempo, Aleexandre suava de nervoso, porém Baldo não parecia se incomodar com o atraso do amigo de fábrica. Quando Baldo e Xablau se encontraram ninguém poderia ser julgado se desviassem seu olhar para vê-los. Não era possível identificar se estavam brigando ou se de fato eram conhecidos. Era um tal de “E aí, cachorro?” pra lá e “Fala, viadão!” pra cá. Ambos foram repreendidos por Aleexandre que alertou que ambos poderiam levar advertências seríssimas devido ao seu comportamento.  Baldo não gostou da repreensão e já jurava quebrar na porrada quem quer que fosse que tentasse lhe aplicar uma correção. Aleexandre precisou respirar fundo, ele precisava do caso, tinha trabalhado muito e não seria naquele ponto que colocaria tudo a perder, então limitou-se a advertir mais uma vez a dupla que ficou de resmungos durante toda a passagem de roteiro do advogado.
Os três entraram no tribunal para a audiência e Aleexandre não parava de olhar seu relógio de pulso, mais um presente de dia dos pais. Pagara R$ 30 para a escola dos filhos para fazerem essa ação, achou que já tinha visto de tudo, até que recebeu o relógio coberto por macarrão e purpurina. Era monstruoso, pensou que talvez pudesse procurar uma outra escola para os filhos. Estava ansioso e ficava dançando em seus pés ao lado de seu cliente enquanto aguardavam para entrar na sala, até ali tudo ok, até que ouviu atrás de si:
- E aí, adiiivogado?
Só uma pessoa era detestável o suficiente para fazer essa brincadeira com Aleexandre e essa só poderia ser sua “colega” de anos Amanda Raimundo. Amanda era baixinha, tinha o cabelo tingido de loiro platinado à la Ana Maria Braga, além de ser rechonchuda e com grandes ancas. Aleexandre sempre a comparou com um daqueles bonecos Trolls. Amanda já era de certa idade, e suas plásticas, muitas delas malsucedidas, mostravam isso. Aleexandre então se virou com seu sorriso mais falso e cumprimentou a colega.
- Raimundinha, querida, como vai? – sabia que a colega detestava o apelido, mas sentira-se vingado. – O que está fazendo aqui hoje?
- Ora, ora. Veja você que coincidência. O Pereirinha que estava cuidando dos interesses da ex-empresa de seu reclamante foi internado recentemente com diverticulite. Impossibilitado de dar andamento do caso, mais que prontamente me indicou. Foi uma surpresa e tanto, a princípio iria recusar o caso, mas quando soube que você, meu adiiiivogado querido – deu um sorriso largo quando disse a palavra -  estava do lado do queixante, não foi uma oferta que pude recusar. Tive pouco tempo para me preparar, sabe? Mas acredito que você esteja com a fava e o queijo na mão, não é mesmo?
- Bem, à princípio é um caso bastante simples e que não deve nos levar muito tempo em audiência, certamente.
Amanda encarava o colega com seu largo sorriso, então Aleexandre notara a recauchutagem da vez. Ela tinha os dentes muito mais brancos que o usual, porém eles também pareciam maiores do que seria o normal. Disfarçou uma risada com uma tosse.
- Está bem, querido? – perguntou Amanda entre dentes.
- Claro, claro. É só o ar aqui que está um pouco abafado, só isso. Veja, as portas já se abriram, podemos entrar. Te vejo lá dentro, sim?
Amanda o cumprimentou com um aceno de cabeça e virou teatralmente para ir chamar o seu cliente. Aleexandre ficou extremamente aliviado por aquele momento ter chegado ao fim, mas sabia que teria momentos difíceis com a Amanda na audiência. Mal sabia que Amanda seria o último de seus problemas naquela manhã.
Assim que todos estavam colocados e posicionados a juíza Ivone foi anunciada, entrou com cara de poucos amigos, mas era tudo ato. Gostava do respeito que sua presença impunha. Posicionou-se em seu lugar e sem rodeios deu início ao processo. Achava tudo aquilo monótono, pois somente de se olhar as evidências era claro para ela o que deveria ser feito. Mas precisava ouvir as duas partes. Pouquíssimas vezes na sua vida fora surpreendida com qualquer anormalidade onde uma empresa não fazia um acordo com seus antigos funcionários. E assim foi. Os advogados faziam suas colocações, colocavam suas provas em questão e faziam as perguntas que a juíza deveria fazer aos envolvidos.
Audiência brasileira é pior que casal brigado, brincava Aleexandre com a esposa. O advogado é proibido de dirigir-se diretamente à testemunha, então, mesmo que ela esteja ouvindo o que o advogado fala, só pode responder às perguntas quando o juiz as repete. É a mesma coisa o casal brigado: sentados à mesa a esposa pede ao filho “Pode pedir ao seu pai que me passe o sal?”, o pai está sentado bem ali ao lado e ouviu tudo, porém só pode passar o sal quando o filho pergunta “Pai, a mãe tá perguntando se você pode passar o sal.” Um verdadeiro porre.
Tudo estava indo o mais normalmente possível, até Xablau comportara-se de maneira atrapalhada, porém respeitosa.
Chegou a vez do ex-patrão de Theobaldo depor, foi chamado para que se sentasse ao lado da juíza e logo começaram as perguntas tanto de Amanda, quando de Aleexandre.
Muito embora, até os clientes sejam instruídos para que não troquem olhares durante a audiência, Leônidas encontrava momentos de brecha para que pudesse encarar Baldo. Seu olhar misturava desprezo, deboche e arrogância e seu discurso, apesar de contido, não era nada amigável.
Baldo, nordestino arretado, viera para São Paulo para procurar melhores oportunidades para sua família, mas nunca fora de levar desaforo para casa. Era questão de honra, visse? Não estava gostando nem um pouco dos olhares daquele burguesinho do Leônidas, ia todo cheirosinho para à fábrica pra chegar no final do dia cheirando a salsicha como qualquer um outro do setor. Fora que ele falava difícil, era um puta de um metido a besta, o sangue de Baldo fervia com a presença de Leônidas. Os dois nunca se bicaram e ele tinha certeza que sua demissão tivera dedo almofadinha de Leônidas nisso.
Leônidas respondia às perguntas e apresentava o seu cenário e vez ou outra menosprezava Baldo. Amanda encarava a juíza feito um dois de paus, nem tanto por atenção, mas é que suas aplicações de Botox faziam com que ela não conseguisse piscar com tanta frequência.
Leônidas fora dispensado e retornara ao seu lugar. A juíza Ivone já se preparava para dar o seu veredito e a sentença final. Era perceptível o clima tenso entre ambas as partes, sempre fora assim, a juíza Ivone nem costumava dar muita bola para isso, afinal de contas era normal. Ela encarava os papéis em sua frente enquanto preparava as palavras que ia usar, eis que não se sabe como, quando e porquê uma grande discussão entre Leônidas e Baldo tomara lugar.
Quando a situação não podia ficar pior, ambos advogados tentando conter seus clientes, até mesmo Amanda que era chegada num rebú, tentava evitar o conflito, Leônidas atravessa a sala como uma flecha e a próxima coisa que temos é Baldo caído no chão com um grande soco que levara no nariz.
A juíza Ivone estava tão perplexa quanto cada um no recinto. Em 36 anos de profissão jamais vira coisa igual. Em sua perplexidade, quando viu a cena, levantou mais do que depressa e aproximou-se dum Leônidas sendo contido pela segurança e de um Baldo caído no chão e proferindo injúrias ao ex-chefe. Quando a juíza se levantou todos congelaram, pois se a cena da briga em si não fosse um choque, jamais imaginariam que a juíza sairia em socorro daquele pobre homem. Mas sentiu-se muito compadecida e indignada, por isso correu para ajudar Baldo a se recuperar, ver se estava bem.
Interveio em meio a discussão de Baldo e Leônidas e tentava acalmar Baldo enquanto tentava ajuda-lo a levantar. Até que a juíza irritou-se e mandou que todos calassem a boca ou seriam presos.
- Ah, mas vá pá putaqueopariu.
Amanda não sabia se ria ou se fingia indignação. Aleexandre sentia uma familiar taquicardia, aquilo não podia estar acontecendo. Muito embora a confusão tivesse sido vergonhosa e poderia coloca-lo em risco, agora tinha ali, seu cliente, mandando que a juíza fosse pra puta que pariu. Quis abrir um buraco na terra e ir parar no Japão.
Depois de um silêncio de 2 segundos, que pareceram duas horas:
- MEIRINHO! PRENDA ESSE HOMEM POR DESACATO! – gritou a juíza Ivone, que além de tudo também encontrava-se agora discutindo com Baldo e Leônidas. O escrivão olhava aquilo tudo e já não sabia mais o que deveria ou não colocar nos autos do processo.
Aleexandre entrou no meio do olho do furacão e tentou justificar a qualquer custo a ação de seu cliente. Pediu, argumentou e até implorou para que a juíza relevasse. Mas não teve jeito, estava decidida.
- Apoi, mas quem essa velha tá achando que é, pae? – a juíza arregalou os olhos e dessa vez ela mesma perdera a compostura e estava indo pra cima de Baldo. Aleexandre na boa vontade de ajudar tentou apartar os dois. Baldo continuava no chão, mas ameaçava levantar. Aleexandre colocou a mão uma mão no peito de Baldo, mas infelizmente a outra foi parar no peito da juíza.
Mais dois daqueles segundos eternos. Amanda definitivamente estava rindo, era impossível não fazê-lo. Entrara com uma causa perdida e agora mal sabia o que ia sair daquele furdunço. É claro que já estava há um bom tempo filmando a cena com seu celular. Quem na ordem ia acreditar naquilo? Ela que não ia perder a chance.
- MEIRINHO, PRENDA ESSE HOMEM POR DESACATO E ASSÉDIO.
O próprio meirinho não sabia mais quem deveria levar em detenção.
Numa cela provisória dentro de uma das salas do tribunal encontrava-se Baldo. A juíza sentenciara que ele embora tivesse ganhado o processo contra sua antiga empresa, deveria ser levado em detenção podendo ser liberado com fiança. Em sua mão usava  telefone concedido pelos oficiais da sala para que pudesse fazer sua ligação de lei. Naturalmente ligaria para o seu advogado, porém o mesmo encontrava-se preso numa cela do outro lado do recinto. Ligou para Sônia:
- Alô, “Sonha”? “Sonha”? Escuta é o Baldo... “Sonha” me escuta... Sim, eu ganhei o processo, mas escuta... Porra, mulé da peste, deixa eu falar. Eu ganhei o processo, mas acontece que fui preso, o preço da fiança é o nosso puxadinho “Sonha”. Aquele pulha do Leônidas me sacaneou de novo, agora tenho que esperar o safado chegar com o dinheiro da fiança, talvez eu até tenha que passar a noite...
- Alô, meu benzinho. Não, não... É que estou usando o telefone do tribunal. Sim. Por isso o número estranho. Não, não tô com problema no celular. Meu bem, escute... Sim, nós ganhamos a causa, Mas querida, ouça... Não, eu não sei se vou almoçar em casa. FERNANDA! Escute, houve um imprevisto terrível na audiência, estou preso e preciso que você venha ao tribunal pagar minha fiança e me buscar. FERNANDA! Só venha, te explico depois.
A essa hora a juíza Ivone já estava em seu apartamento, do jeito que o diabo gosta. Seminua em sua sala, Pavarotti dormia ao seu lado, um copo de Whisky na mão e Waldick Soriano comendo solto em “Vamos Gozar a Vida”.

[conto baseado em eventos reais]

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