Desventuras em série de um “quitute frito, brasileiro, com base de massa de farinha de trigo e recheio de frango desfiado, que pode, ou não, conter catupiry®” ou o terror do trajeto para o trabalho de ônibus

         Como diz o ditado popular: todos os caminhos levam a Roma, e foi daí que um belo dia, que eu estava sem carro, fiquei em conflito sobre que forma eu iria para o trabalho.
Geralmente vou dirigindo ao trabalho, porém devido a um pequeno acidente de trânsito envolvendo uma fechada de uma moto, um carro, dois motoristas nervosos e uma fantasia de Super Mario, neste dia eu teria que buscar uma alternativa. Baixei diversos aplicativos, pensei em Uber ou Táxi, porém os valores das corridas estavam elevados e eu não estava afim de gastar muito. Até que me ocorreu de baixar um aplicativo chamado Moovit, que além de te ajudar a achar o melhor trajeto ao trabalho, ainda indica onde e qual transporte você deve pegar. Pois bem, estava decidido: seria transporte público, ônibus.
Me arrumei para trabalhar, peguei a minha mochila e saí feliz da vida numa grande jornada. Dei play na minha setlist do celular e dei o primeiro passo em direção ao ponto do ônibus. Nina Simone cantava seu poderoso “Feeling Good” e eu estava muito confiante, pois apesar de ser muito perdido o aplicativo não só mostrava a melhor rota, mas também a que horas passaria o ônibus e quantidade de pontos que se passariam até que eu precisasse descer. Mel na chupeta, foi o que pensei.
Cheguei no ponto de ônibus, fazia um dia de frio, o que pra mim caiu como uma luva já que eu teria que andar consideravelmente bem. De momentos em momentos eu consultava o aplicativo para ver se meu ônibus já se aproximava, teria que pegar um que fosse em direção à Santo Amaro. Confesso que eu estava um pouco ansioso, no meu fone Ninão deu vez a Maiara e Maraisa com “Medo Bobo”. Passaram mais alguns momentos e finalmente, triunfante, subindo a rua lá vinha o meu “busão” o 5010-10. Dei o sinal, quase acenando desesperadamente, e a lotação indicou sua parada.
Subi e cumprimentei com um “Bom dia!” ao motorista. Até porque se ele não estivesse tendo um bom dia era melhor passar a ter, afinal eu estava dentro daquele ônibus. Maiara e Maraisa foram substituídas por RuPaul e seu “Sissy That Walk”, o que não combinava nada com o andar daquela lotação, fui mais sacudido que suco de caixinha. O caminho era longo e nada deserto, a lotação dava voltas e mais voltas intermináveis. Mas pelo menos o ônibus estava vazio e tranquilo, até que chegou nas imediações da Av. Washington Luiz. Meu amigo, renomearam aquele ônibus de Santo Amaro pra Lata de Sardinha. Era gente saindo pelo ladrão.
RuPaul deu seu lugar a Remmi e, olhando pela janela, me senti num daqueles clipes musicais de baixo orçamento. Encarando o nada, com cara de “Jesus me chama” e ouvindo “Star Spangled”.
Ainda faltava um tempo considerável até meu ponto e tudo o que eu conseguia pensar era em como eu ia conseguir saltar no meu ponto. Pessoas e mais pessoas não paravam de entrar, mas quem tá na chuva é pra se molhar, então vamos que vamos.
Quando eu menos espero ouço uma voz “Prepare-se, seu destino se aproxima!”, bom depois de ser sacudido, espremido e tirado o ar com aquelas “senhouras” bojudas e de prancha no cabelo que sempre escolhem sentarem à janela, só para poderem fechar todas. Achei mesmo que a minha hora já estava chegando. Mas na verdade era o bendito do aplicativo que avisava sonoramente que o meu ponto estava próximo. Achei genial! Parabéns Moovit!
Desci num lugar que me era familiar, porém era necessário que eu fizesse a baldeação para o próximo ônibus, segundo o aplicativo seriam apenas cinco minutos de caminhada e além do mais era indicado no mapa o trajeto. Era pra ser mamão com açúcar. Mas vamos dizer que o mamão não estava maduro e o açúcar na verdade era sal.
Andei por toda a Santo Amaro e não conseguia me achar. Quanto mais próximo eu pensava estar da rua onde eu precisava pegar o ônibus, quando olhava no mapa, mais distante eu estava. Rodei pior que peão do baú. Para fazer companhia ao meu desespero Ruelle cantava “Madness” em meus ouvidos. Para ser sincero eu estava quase desistindo de ir trabalhar e ficar ali em Santo Amaro mesmo, fazendo umas comprinhas. Mas eu não podia desistir. Então comecei a perguntar às pessoas na rua:
- Moço, por favor, estou perdido. Preciso pegar o ônibus 6041-10. Pode me indicar a direção? – recebi apenas um aceno negativo com a cabeça.
- Moça, oi! Desculpa, mas você sabe onde eu posso pegar o ônibus 6041-10? – mais uma resposta negativa.
Eu já estava ficando desesperado. Agora além de não saber mais onde estava, não sabia chegar ao trabalho e muito menos voltar para casa. Pensei nas possibilidades em bater de porta em porta e dizer que me perdi, não sabia voltar para casa e torcer para ser adotado por alguma família de bom coração. Se estivesse no meu destino um dia eu ainda reencontraria minha antiga família, mas isso estava nas mãos de Deus, eu nada mais podia fazer.
                Perambulei, fui perguntado se tinha ouro, quase tive vontade de rir em escárnio. Se ouro eu tivesse, o que eu estaria fazendo em Santo Amaro? Tentaram me vender relógios, meias. Pessoas de coletes azuis queriam fazer experimentos horríveis comigo, fazendo perguntas intermináveis, quando não conseguiam responder à minha simples pergunta sobre onde eu poderia pegar o 6041-10. Que morte horrível, abandonado por Deus e o aplicativo. Parecia que estava tudo começando a ficar escuro, a luz do dia parecia perder o seu efeito. Eu continuava andando, mesmo sem um rumo, sem um norte a seguir até que minhas preces finalmente foram atendidas e eu não mais estava tão sem rumo assim. Eu só tinha um nome, mas valia a pena tentar: Rua Paulo Eiró.
                Parei no primeiro comércio que topei e perguntei a um senhor de camisa azul e bigodinho branco, que se encontrava na porta, se ele sabia onde ficava a R. Paulo Eiró.
                - Mas o que você precisa fazer nessa rua? ­– confesso que a pergunta me deixou um pouco perplexo, que diferença fazia? Mas eu que não queria fazer papel de trouxa em dizer que eu me perdi em rumo ao trabalho respondi com um sorriso amarelo.
                - É entrevista de emprego. – foi a primeira resposta que me veio em mente. E confesso que eu a achei bastante inteligente, pois com o país em crise, todos são solidários, ainda mais quando se trata sobre alguém conseguir um trabalho.
                - Rua Paulo Eiró? – perguntou retoricamente o senhor.
E eu na minha total e completa inocência:
- É moço, fica perto do teatro Paulo Eiró. – ah, mas eu estourei a boca do balão com essa informação complementar. Apesar de não fazer ideia se ela era realmente verdadeira.
Então o senhor, enquanto me encarava, pensou mais um pouco e disse:
- Mas pera lá. Você precisa ir na Rua Paulo Eiró ou no Teatro Paulo Eiró? Elas são em direções opostas.
“Meu Mundo Caiu” de Maysa entoava no fone esquerdo que eu mantivera na orelha. E agora? Eu não queria me sentir mais palhaço do que eu já estava me sentindo. Disse com tanta convicção que o teatro ficava na rua que levava o mesmo nome e tinha sido desmascarado ali, no seco.
- Olha, agora o senhor me deixou confuso. Mas eu acredito que seja a rua mesmo. – respondi na esperança de pelo menos alguma direção eu conseguir.
- Mas você precisa ir na rua ou no teatro? – de novo aquela pergunta, até eu começava a duvidar sobre onde eu realmente precisava ir. Olhei para ele da mesma forma que o Windows olha pra gente quando dá um pau de sistema, com uma tela azul. Percebendo meu transtorno ele me deu a direção da rua e do teatro, mas insistia em querer saber aonde eu precisava ir com a pergunta que me assombra até hoje “Mas é na rua ou no teatro? Porque se for na rua você sobe aqui, vira à direita e depois à esquerda e segue reto toda vida. Mas se for pro Teatro é lá pra Adolfo Pinheiro, dai você vai voltar por onde você veio e vai virar à direita, vai reto, quando chegar no fim da rua, vira à direita de novo, depois desce à esquerda e você chega lá.”
Eu estava quase querendo levar este senhor comigo para me guiar, como pode alguém ter tantas informações assim na cabeça? Esplêndido! Eu disse a ele que apesar da minha confusão eu estava certo agora de que era a rua o meu destino. Eu o agradeci imensamente e fiquei feliz por finalmente ter a minha direção.
Reoloquei o fone da orelha direita e “Conquest of the Paradise” de VANGELIS iniciava triunfante com seu canto gregoriano. Consultava o mapa do aplicativo e as direções do senhor eram mais que precisas, eu finalmente me aproximava de meu destino. E isso foi confirmado quando avistei o ponto e melhor que tudo, avistei ônibus que eu precisava pegar, parado no ponto. A música chegava ao seu ápice. Tudo parecia acontecer em câmera lenta, eu corria para o ponto, um sorriso brotava em meu rosto, minha mochila se chocava contra as minhas costas e fazia um barulho de tilintar das ponteiras dos zíperes. Meus longos cabelos eram lambidos pelo vento forte que soprava. Minha mão se ergueu e eu finalmente dei o sinal. O sinal de esperança. O sinal de que eu estava salvo. O sinal de que ainda havia esperança para mim, minha história ainda não tinha acabado.
E o ônibus passou por mim.
Filho da puta desse motorista. Mas eu estava tão feliz em pelo menos ter me encontrado. Eu sabia que outro ônibus iria passa dali um pouco, então não me preocupei. Eu não perdi ônibus nenhum, o motorista que perdera a incrível oportunidade em me ter como um de seus passageiros.
Apenas me restava esperar pelo próximo ônibus, o aplicativo indicava que não demoraria muito até o próximo chegar. E ali fiquei, feliz. Muitas linhas se passavam, mas eu só tinha olhos para o 6041-10, Jd. Jangadeiro.
E ali vinha ele, me senti revigorado, a energia pulsava em mim. Dei o sinal, me senti poderoso, com apenas um gesto, fazendo aquele grande veículo parar. As portas da esperança se abriram, mas o meu choque não poderia ser maior.
Quando subo a plataforma do ônibus e vejo o motorista, ele não era ninguém mais, ninguém menos que o mesmo senhorzinho que me fornecera as instruções. Escapara ao meu olhar a inscrição no bolso de sua camisa quando conversamos mais cedo, mas lá estava escrito SP Trans. Mais uma vez o cumprimentei com um sorrisinho amarelo, mas passei depressa a catraca, era humilhação demais.
Segundo o aplicativo não demoraria muito para que eu chegasse ao trabalho, mesmo tendo me perdido eu ainda conseguiria chegar dentro do horário. O ônibus estava vazio, mas para não correr o mesmo risco anterior eu já fiquei feito um dois de paus na porta, para facilitar a minha descida.
Senti uma paz no coração, que foi bastante breve, eu me dirigi ao fundo do ônibus, onde não se encontrava ninguém. Na frente, dezenas, não. Centenas, não. Milhares de lugares vazios, esperando para serem ocupados. Porém um jovem e uma moça entraram comigo no ônibus. A moça atrás de mim e o jovem no bando à minha direita. Um abre um pacote de pipoca doce Emília e a outra um sacão de Fofura sabor queijo. A vontade de desmaiar foi pior do que se tivessem enfiado um pano com éter em meu nariz. Aquele cheiro era nauseante. Com tantos lugares para sentarem, por quê? Por que perto de mim? Só pude agradecer ao Divino que o meu trajeto pelo menos era curto.
E lá fomos nós. Eu, de pé, os comensais próximos à mim e o ônibus indo a milhão. Gostei daquele senhor.
De repente o mesmo aviso conhecido toca em meu celular e ouço a voz angelical indicando mais uma vez que meu destino se aproximava. OBRIGADO SENHOR!
Eufórico e aliviado, ao mesmo tempo, David Bowie deu início a “Rebel Rebel” em meu fone, eu saltei em minha parada e fui caminhando até o prédio onde trabalho.
E foi assim, meus amigos, cheio de fortes emoções, mas com uma setlist de arrasar, que eu cheguei ao trabalho naquele dia. Ainda ninguém sabe quais outras aventuras me aguardam, mas vai demorar uma semana pro carro ficar pronto. Penso cá com meus botões: o que mais encontrarei no meu caminho?

Agradeço a Deus por ter sobrevivido a essa manhã e poder compartilhar minha história com vocês. Não deixem que ela morra, espalhem a 4 ventos, de pulmões brandos as desventuras em série desse  “quitute frito, brasileiro, com base de massa de farinha de trigo e recheio de frango desfiado, que pode, ou não, conter catupiry.

[gostou da playlist e gostaria de ouvi-la? Agora você pode clicando aqui: https://www.youtube.com/playlist?list=PLlJdyhh6YYoR2zZrW8pU8wUU4ZdvsSwE3]

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